sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

As bênçãos dos campos e dos animais


 
Longe vai o tempo de uma relação quotidiana com a natureza, numa vivência partilhada feita de entendimentos mais ou menos empíricos e cumplicidades existenciais que, com a ciclinidade daquela, se fundiam em prolífera simbiose.

Relação mística, essa, que em tempos idos, marcava claramente os tempos fortes das nossas vivências tradicionais, entendida como enquadrando os principais momentos de transição anuais, feitos paradigmas referenciais das diversas fases da maternidade criadora que, em entidades divinas mais ou menos panteístas (deusas-mães, grandes-deusas ou terras-mães telúricas e criadoras), encontravam cabal representação.

Terra, ovo da vida, fecundada pela chuva, germinada pelo sol que sobre ela derramava os seus benfazejos e fertilizantes raios. Mãe de todas as criaturas que sobre si se movimentam e alimentam. Desde o começo uma fonte inesgotável de existências, que se revelam em ciclos sucessivos e intermináveis.

 Para celebrar e balizar tais momentos realizavam-se, então, grandes festividades. Constituindo como que eclosões do sagrado num tecido socio-temporal predominantemente profano. Manifestavam, assim, o domínio do excecional resultante de uma rotura com a ordem e o quotidiano.

Nelas, todos os anos se consagravam as novas colheitas ou as novas crias recém-nascidas. Afinal, tais seres obedecem a um ciclo vital evanescente: expressando um percurso de vida concomitante com os ciclos cósmicos que lhes servem de catalisadores.

Ciclos de morte e de vida. De apogeu regenerador seguido do inevitável desgaste mais ou menos corruptivo. Tendendo para uma entrópica degeneração. Para uma imersão catársica e recriadora no limbo primordial; ao mesmo tempo terrífico e prodigioso.

 Assim, a festa constituía, ancestralmente, a celebração popular pelo fluir adequado das energias positivas (com a natureza intimamente ligadas) necessárias a uma vivência comunitária, saudável e fértil. Fluir este personalizado num totem, espírito vegetativo ou animal clânico. Mais tarde, divindade específica pagã, hoje em dia cristianizada.

Nos nossos dias, a festa constitui expressão pública de devoção a uma divindade protetora local: o orago. Intermediário na relação com o sagrado, este é essencialmente corporizado através das variantes marianas e de diversos santos, constituindo-se as invocações de Cristo como relativamente raras e que apenas apresentam práticas devocionais sobre a forma de "pessoas divinas" em casos muito particulares; quase sempre substitutos.

Rituais votivos de consagração de campos e animais a divindades pagãs, telúricas e naturalistas, direcionarão agora as suas valências para as entidades cristãs, mantendo, estas, muitos dos anteriores atributos caracterológicos e cultuais. Por exemplo, continuam a ser hoje, preferencialmente, divindades femininas as responsáveis pela fertilidade dos campos e divindades masculinas as responsáveis pela fecundidade dos animais!

Oferendas rituais das primícias à magnanimidade da terra-mãe, oferecem-se hoje aos santos e santas do nosso imaginário.

Cânticos e danças campestres de homenagem e elogio às potestades naturais, foram substituídos por ladainhas, rogações, e preces análogas, realizadas em largos, templos ou nos campos de cultivo

 São fusões e reinterpretações, sobrevivências e persistências modelares ou pontuais que, nos tempos privilegiados da renovação da natureza, afluem irresistivelmente.

Ignorando obstáculos doutrinários, sobrepujando limitações cerimoniais canónicas e impregnando intensamente as festividades desta época. Tão velhas como o tempo, impregnam, ainda, de floridas divinizações, pessoas, coisas e animais.

São transmutações nas formas que não deixam esquecer, porém, o elemento significante essencial; encarar a realidade duma forma transcendental e holística, acrónica e vivencial. Num contexto de causa e efeito que tanto implica o que está em cima como que está em baixo, o visível como o invisível, o cultual como o biológico, o animal como o vegetal.

 

*Texto constante de uma palestra realizada em 2012 no Museu Agrícola dos Riachos por ocasião das Festas da Benção do Gado.

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