Longe vai o tempo de uma relação
quotidiana com a natureza, numa vivência partilhada feita de entendimentos mais
ou menos empíricos e cumplicidades existenciais que, com a ciclinidade daquela,
se fundiam em prolífera simbiose.
Relação mística, essa, que em tempos
idos, marcava claramente os tempos fortes das nossas vivências tradicionais,
entendida como enquadrando os principais momentos de transição anuais, feitos
paradigmas referenciais das diversas fases da maternidade criadora que, em
entidades divinas mais ou menos panteístas (deusas-mães, grandes-deusas ou
terras-mães telúricas e criadoras), encontravam cabal representação.
Terra, ovo da vida, fecundada pela
chuva, germinada pelo sol que sobre ela derramava os seus benfazejos e
fertilizantes raios. Mãe de todas as criaturas que sobre si se movimentam e
alimentam. Desde o começo uma fonte inesgotável de existências, que se revelam
em ciclos sucessivos e intermináveis.
Nelas, todos os anos se consagravam
as novas colheitas ou as novas crias recém-nascidas. Afinal, tais seres obedecem
a um ciclo vital evanescente: expressando um percurso de vida concomitante com
os ciclos cósmicos que lhes servem de catalisadores.
Ciclos de morte e de vida. De apogeu
regenerador seguido do inevitável desgaste mais ou menos corruptivo. Tendendo
para uma entrópica degeneração. Para uma imersão catársica e recriadora no
limbo primordial; ao mesmo tempo terrífico e prodigioso.
Nos nossos dias, a festa constitui
expressão pública de devoção a uma divindade protetora local: o orago.
Intermediário na relação com o sagrado, este é essencialmente corporizado através
das variantes marianas e de diversos santos, constituindo-se as invocações de Cristo
como relativamente raras e que apenas apresentam práticas devocionais sobre a
forma de "pessoas divinas" em casos muito particulares; quase sempre
substitutos.
Rituais votivos de consagração de
campos e animais a divindades pagãs, telúricas e naturalistas, direcionarão
agora as suas valências para as entidades cristãs, mantendo, estas, muitos dos anteriores
atributos caracterológicos e cultuais. Por exemplo, continuam a ser hoje,
preferencialmente, divindades femininas as responsáveis pela fertilidade dos
campos e divindades masculinas as responsáveis pela fecundidade dos animais!
Oferendas rituais das primícias à
magnanimidade da terra-mãe, oferecem-se hoje aos santos e santas do nosso
imaginário.
Cânticos e danças campestres de
homenagem e elogio às potestades naturais, foram substituídos por ladainhas,
rogações, e preces análogas, realizadas em largos, templos ou nos campos de
cultivo
Ignorando obstáculos doutrinários,
sobrepujando limitações cerimoniais canónicas e impregnando intensamente as
festividades desta época. Tão velhas como o tempo, impregnam, ainda, de floridas
divinizações, pessoas, coisas e animais.
São transmutações nas formas que não
deixam esquecer, porém, o elemento significante essencial; encarar a realidade
duma forma transcendental e holística, acrónica e vivencial. Num contexto de
causa e efeito que tanto implica o que está em cima como que está em baixo, o
visível como o invisível, o cultual como o biológico, o animal como o vegetal.
*Texto constante de uma palestra realizada em 2012 no Museu Agrícola dos Riachos
por ocasião das Festas da Benção do Gado.